sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Atrás da porta

"Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."
(Manuel Bandeira. A morte absoluta. In "Poesia Completa e Prosa", Cia. José Aguilar, 1967 )

Foto: Valéria Araújo



Disseram-me que sou demasiado jovem para saudosismo, e eu cá me ponho a perguntar: saudosismo lá depende de idade?
Pois...
Saudosismo alimenta-se de lembranças, e pelo que me consta desde que somos gerados elas estão conosco, e se até a um feto cabe o saudosismo, que dirá a mim que hoje cumpro meus trinta e dois anos do domingo em que minha mãe teve de deixar a TV e ir ao hospital ver que era deste bebê que passara do dia de nascer, enquanto talvez, espalhados pelo mundo os anônimos sobreviventes da primeira Revolta do Gueto de Varsóvia se recordavam deste dia em suas histórias pessoais, e, como em uma infeliz profecia, exatos trinta e três anos depois deste dia eu nasci, no momento em que idealistas eram torturados e mortos nos porões do DOPS, entregando suas vidas ao tentar criar um país livre aos que chegavam, deixando-me tais anônimos seu legado por herança, o idealismo, a revolta contra a opressão e a vontade de lutar por meus objetivos, ainda que sejam individuais ou de toda a humanidade.
Infelizmente não me recordo mais as sensações do dia em que vi a luz da vida pela primeira vez, o dia em que senti pela primeira vez o peso gélido do mundo externo, prevenindo-me do que me esperava. Não entendi os signos do ar frio da sala do hospital de Vila Nova Cachoeirinha - então recém inaugurado - e nao percebi o desespero nos gritos do mundo externo. Minhas memórias desse dia infeliz apagaram-se junto com tantos outros momentos angustiosos, ainda que minha alma triste insista em guardar os momentos desesperados, alguns me abandonaram por pensar que seriam felizes. Creio que naquele momento a ansiedade de viver o que havia fora da minha bolha de água quente me tivesse trazido uma sensação feliz e estas sim minha memória saudosista regurgita na teima de esquecer.
Não me lembro deste dia. Nascer é como morrer e a tristeza de morrer assemelha-se à de nascer: uma única opção, e ambas nos privam de saber o que haveria atrás da porta se a tivéssemos aberto.

domingo, 13 de janeiro de 2008

Testamento

Manuel Bandeira


O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros — perdi-os...
Tive amores — esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!

(29 de janeiro de 1943)

Shows em Barcelona